Anistia. Retroativos. Sustentação Oral. Marcelo Pires Torreão.
Íntegra da transcrição e vídeo da Sustentação Oral do Dr. Marcelo Pires Torreão no julgamento do dia 17/11/2016, que resultou em uma vitória unânime perante o Supremo Tribunal Federal.
“Senhores Ministros, ninguém merece sofrer por ser diferente ou por pensar de forma diferente. Admitir qualquer tipo de violência contra uma pessoa em razão de sua ideologia ou orientação política é algo tão grave quanto permitir qualquer tipo de agressão baseada em diferença de gênero, diferença de etnia ou diferença de religião. É o mais puro conceito de intolerância.
Essa situação torna-se extrema quando o agressor é o próprio Estado. Quando o ente soberano de uma nação utiliza-se de suas instituições, inteligência policial e forças armadas para perseguir, torturar e matar aquele que pensa diferente, abre-se caminho para os maiores crimes e os maiores erros da história da humanidade.
Se pensarmos bem, assim ocorreu no Holocausto contra os judeus, assim ocorreu no Apartheid contra os negros e assim ocorreu nas Ditaduras pelo mundo.
Especificamente quanto à nossa ditadura, vários casos são conhecidos da população nacional. Artistas que foram censurados. Pensadores que foram buscar exílio fora do país, como Darcy Ribeiro ou o sociólogo Betinho. Pessoas que foram torturadas e assassinadas por agentes estatais, como o jornalista Vladmir Herzog, como o estudante Honestino Guimarães e como o filho de Zuzu Angel, Stuart, que foi amarrado aos pés de um veículo e arrastado por quarteirões até que seu corpo ficasse inteiramente esfolado. Nos intervalos dessa prática, a boca de Stuart era colocada no escapamento do veículo para que ele se sufocasse com os gases tóxicos.
O caso que foi muito bem lembrado pelo advogado que me antecedeu na tribuna, da Julieta Petit, também é igualmente grave. Ela perdeu três filhos para a ditadura de forma extremamente grave. O primeiro filho, Jaime, foi decapitado. A cabeça dele foi entregue a um comandante do exército. A segunda filha, Maria Lúcia, desapareceu e veio a ser encontrada vinte anos depois, em 1996. Teve o corpo reconhecido por exame de DNA e ainda se encontrava com um saco plástico fortemente amarrado à região do pescoço, instrumento que havia sido usado para asfixiá-la. O terceiro filho desapareceu e dele não se teve mais qualquer notícia. Esse que acabei de narrar foi objeto de condenação do Estado Brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque o Estado Brasileiro não havia empenhado esforços em localizar os corpos e também não havia cumprido integralmente com sua própria anistia, na forma prevista pelo legislador pátrio, porque, embora paga a prestação mensal, ainda se encontrava pendente, e ainda está pendente, a parte retroativa.
Portanto, falar de anistia é falar, em primeira e última análise, de graves e covardes violações aos direitos de um ser humano.
E qual a forma que o legislador pátrio previu para reparar esses danos, para pedir essa espécie de perdão àqueles que foram prejudicados pela ditadura?
O legislador trouxe no artigo 6º, § 6º, da Lei 10.559, atual lei de anistia, a previsão de uma indenização em prestação mensal, com cinco anos de retroativos. E o artigo 12, § 4º, dessa mesma Lei, estabelece que essas obrigações devem ser cumpridas no prazo de 60 dias. Aqui eu abro parênteses. O legislador fala do cumprimento integral da portaria de anistia. Ele não restringe esse cumprimento à parcela mensal. Ele não restringe o cumprimento da parte retroativa a quem aderir aos termos da Lei 11.354, fazendo um acordo para receber os retroativos parcelados, em nove anos, sem juros ou correção monetária. O legislador fala em cumprimento único, integral, da portaria de anistia, quanto à parte mensal e à parte pretérita, observando-se a disponibilidade orçamentária.
E onde reside a disponibilidade orçamentária? Nas próprias LOAs. As Leis Orçamentárias Anuais trazem um quantitativo específico para aquela ação governamental de indenização aos anistiados políticos. Não há prova mais robusta de disponibilidade orçamentária do que as próprias LOAs, que trazem um quantitativo direcionado a essa ação governamental.
A União não trouxe uma contraprova para mostrar que aquela quantidade de orçamento prevista em cada exercício financeiro foi esgotada ao término de cada ano.
Seria difícil para a União saber quanto foi gasto com anistia política em cada ano? A resposta é negativa.
Atualmente, nós vivemos a era da transparência, de forma que todos os gastos governamentais são públicos, acessíveis a qualquer cidadão. E deve ser assim. Por isso, qualquer cidadão pode saber quanto que o governo gasta com cada ação. E foi esse o trabalho realizado pelo amicus curiae: reunir todas as leis orçamentárias anuais e saber quanto que foi gasto em cada exercício financeiro.
Permitam-me um exemplo. No ano de 2004, que é o ano em que foi editada a portaria do Recorrido, as LOAs previam 78 milhões de reais para indenizações aos anistiados. Segundo informações do Portal da Transparência, que é de responsabilidade da Controladoria Geral da União (CGU) – portanto estamos falando de dados do governo – em 2004, foram gastos 10 milhões com todo o tipo de anistiados políticos. A subtração resulta em 68 milhões de reais só no orçamento de 2004.
Um outro caminho pode ser feito. O portal Contas Abertas, que é alimentado com informações do SIAFI, o Sistema Integrado de Administração Financeira – portanto mais uma vez estamos utilizando dados do próprio governo – traz um somatório de todas as leis orçamentárias, desde que a lei de anistia foi editada, no ano de 2002, e tudo o que foi gasto desde então. O portal Contas Abertas informa que as leis orçamentárias previram 8 bilhões de reais ao pagamento de anistiados políticos ao longo desses anos e informa que 5 bilhões foram gastos ao longo desse período, ou seja, temos uma totalização de 3 bilhões de reais de disponibilidade orçamentária.
Isso explica porque, ano após ano, esses valores retornam em superávit orçamentário aos cofres do tesouro nacional e explica porque a União não utilizou esses dados públicos, disponíveis a qualquer cidadão.
Mas não estamos a falar de bilhões. A Ministra Presidente bem lembrou no início da sessão que são 946 processos sobrestados. Então, são 946 pessoas que acreditaram no Judiciário para fazer valer o cumprimento integral da portaria de anistia. As outras dezenas de milhares de pessoas aderiram aos termos da Lei 11.354. Fizeram um acordo para receber os valores retroativos parcelados em nove anos, sem juros e sem correção monetária, porque precisavam do dinheiro. Segundo informação do Ministério da Justiça e confirmada pela AGU nos próprios autos, o valor médio de um retroativo de anistiado político é de 200 mil reais. O próprio Recorrido busca o cumprimento de sua portaria de anistia, que é de 186 mil reais. Portanto, se nós multiplicarmos pela quantidade de processos sobrestados, vamos chegar em 2% de tudo o que havia sido previsto nas leis orçamentárias anuais.
Senhores Ministros, essas questões que integram este recurso extraordinário já foram apreciadas pelas duas turmas dessa Corte Suprema.
Na 1ª Turma, essa questão foi analisada no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 26.947, que possui relatoria e voto brilhantes da Eminente Ministra Cármen Lúcia e um voto igualmente completo do Eminente Ministro Ricardo Lewandowski. Na 2ª Turma, essa matéria foi analisada no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24.953, cujo julgamento foi presidido pelo Eminente Ministro Decano, Celso de Mello, que votou conforme a orientação que ora se defende, e votou no mesmo sentido, naquele julgamento, o Eminente Ministro Gilmar Mendes.
Essa jurisprudência, que existe aqui na Corte Suprema desde 2004, levou o STJ a prolatar centenas de acórdãos na mesma direção. Desses acórdãos, vários são de relatoria dos Eminentes Ministros Luiz Fux e Teori Zavascki, que seguiram em seus votos a mesma orientação dessa Corte Suprema e agora integram essa Corte Maior. Portanto, o que se pede nesta oportunidade guarda coerência, fina sintonia, com a jurisprudência já existente dessa Corte Suprema.
Senhores Ministros, o pagamento final nos processos que nasceram no STJ e transitaram em julgado antes desta repercussão geral sempre se deu por meio de precatório. O STJ concedia a ordem porque a ilegalidade era patente, já que o pagamento deveria ter sido feito em 60 dias. Mas dizia que, se a União não cumprir automaticamente, se requisitaria o precatório. Então, basicamente, nós temos este trâmite: exige-se o trânsito em julgado da fase de conhecimento do mandado de segurança; posteriormente o anistiado individualmente ajuíza uma execução em mandado de segurança, uma execução contra a Fazenda Pública, que também deverá transitar em julgado, para apenas depois o Ministro Presidente do STJ solicitar o pagamento dessas verbas mediante inclusão em precatório. Se há requisição de precatório, há inclusão no programa orçamentário subsequente, não há qualquer surpresa, não há qualquer descontrole orçamentário para a União. Acontece como ocorre em todos os outros casos em que há uma condenação contra a Fazenda Pública.
Termino esta sustentação oral, trazendo uma curiosidade de direito comparado. Os valores que pagamos aos nossos anistiados políticos representa cerca de três vezes menos do que o governo do Chile paga às vítimas da Ditadura Pinochet, segundo informações da Comisión Valech, do governo chileno. Esses valores são cerca de quarenta vezes menos do que o governo da Alemanha paga às vítimas do holocausto, segundo a Jewish Claim Conference. Estamos falando aqui em um universo de aproximadamente cinquenta mil beneficiários, tanto aqui, quanto no Chile, quanto na Alemanha.
Portanto, Senhores Ministros, a anistia não é um favor do Estado. É uma justa reparação pelos graves danos que causou.
Pessoas perderam seus sonhos, seus empregos, seus anos de permanência no Brasil, suas famílias e suas próprias vidas para um bem maior: uma democracia. Hoje, nós podemos ter manifestações livres nas ruas, podemos ter um Judiciário independente e uma imprensa com ampla liberdade porque essas pessoas se dedicaram a nós. Essas pessoas, que aqui chamo de pais e mães da democracia, não podem ser esquecidos, porque a justiça de transição pressupõe essas duas etapas, essas duas dimensões: primeiro se reparar os danos àqueles que sofreram para, em seguida, construir-se uma memória e evitar que jamais atos tão brutais voltem a se repetir. Precisamos avançar nessa primeira etapa de justa reparação dos danos e construir uma verdadeira democracia no Brasil”.