Por Marta Watanabe e Tainara Machado
O início da corrida dos Estados por uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que permita a aplicação de
juros simples no cálculo da dívida com a União é considerada “atitude irresponsável” e cria quadro “preocupante”,
de “loucura” e de “nonsense”, segundo analistas. Para os especialistas em contas públicas, o impacto da decisão
na dívida bruta do setor público é grande, mas o problema maior é o risco à segurança jurídica e a ameaça a regras
básicas de financiamento do país.
Nos últimos dias o STF concedeu liminares aos Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul que permitem a
aplicação da Selic calculada de forma simples e não composta para
o cálculo da dívida com a União. A medida pode zerar a dívida de alguns entes federados ou tornálos
credores do governo federal. Minas Gerais e Alagoas decidiram seguir o mesmo caminho (ler Ministério da Fazenda tenta reverter onda de decisões favoráveis aos
Estados).
“Do ponto de vista econômico os juros simples são um ‘nonsense’, uma prática inusual dentro do que é correto fazer economicamente”, diz o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper. Para Lisboa, a
decisão sobre os juros é um rumo “inesperado e surpreendente”. Nos empréstimos que se toma para pagar em um ano, os juros aplicados já são compostos, lembra. “Por que a regra seria diferente nesses
contratos de dívida com a União, que são de longo prazo?”, questiona.
Com essa decisão, diz ele, se aplica no país um “sistema peculiar diferente do resto do mundo.”
Para Lisboa, os efeitos dos juros simples vão bem além das contas da União. “Se a regra de juros simples vale para
a dívida dos Estados com a União, por que não vale para os títulos da dívida da União? Mas nos títulos da dívida
com a União estão a poupança das famílias, os fundos de investimentos, o fundos de previdência, as aplicações
das empresas”, diz ele. “Se na dívida dos Estados com a União se aplica juros simples, por que não aplicar juros
simples na poupança e nas aplicações financeiras das famílias?”
O consultor legislativo Marcos Mendes tem análise semelhante. Apesar de toda a repercussão da aplicação dos
juros simples na dívida da União e na situação fiscal, o problema maior é a insegurança jurídica que a decisão do
STF traz.
Para ele, os Estados que buscam a aplicação dos juros simples têm “atitude irresponsável”. “É uma loucura, isso
pode trazer repercussões terríveis à segurança. Por que alguém não poderia arguir que a dívida da União também
ter juros simples? Isso afetaria a remuneração dos fundos de previdência. Todo mundo que tem um título do
Tesouro Direto na mão fica sujeito a ter correção por juros simples.”
“Queria ver se um secretário de Fazenda concederia financiamentos para receber juros simples ou se um ministro
do Supremo contrataria um plano de previdência remunerado a juros simples”, diz Mendes.
O expresidente do Banco Central, Arminio Fraga, acredita que as decisões podem ser contestadas. “Espero que
não se sustentem, isso é muito sério” diz ele, “O cobertor está curto, porque a situação do governo federal também
é muito difícil, mas a ideia de mexer nas regras me assusta mais”, disse.
Arminio destaca que a adoção de juros simples nas dívidas estaduais com a União teria impactos enormes e
negativos para a economia brasileira como um todo. “Em momento em que instrumentos de dívida estão
submetidos a esse tipo de incerteza, o Brasil vai passar a ter muita dificuldade de se financiar, e os Estados
também.”
Para Mendes, há um “risco sério” de os juros simples serem reivindicados pelo restante da sociedade. “As
consequências disso seriam graves e o STF não teria como dizer não. Não vejo motivo jurídico para isso ficar
restrito aos contratos entre os Estados e a União ou à esfera pública”, avalia o consultor. Para ele, a decisão do
STF, como representa alívio às contas dos governos regionais, acabará sendo buscada por todos os Estados.
“Mesmo aqueles que a princípio eram filosoficamente contra irão porque senão o governador terá que enfrentar seu
eleitorado.”
Mesmo se o efeito dos juros simples for apenas uma regra peculiar para os contratos de dívida dos Estados com a
União, diz Lisboa, do Insper, o efeito é desastroso. Isso, avalia, aumentaria a dívida do governo federal e os
Estados poderiam expandir seus gastos, sem o enfrentamento necessário da situação fiscal.
Segundo cálculos de Mendes e utilizados pelo ministério da Fazenda em nota técnica sobre o impacto das
decisões do STF , a aplicação dos juros simples tornaria 13 entes federados credores da União e a perda potencial
de receita para o governo federal seria de R$ 313 bilhões.
Pedro Jucá, assessor econômico do Senado, diz que a União teria de emitir títulos para pagar essa diferença,
elevando o endividamento bruto do setor público. Nos Estados diz, ele, a despesa financeira seria trocada por
despesa primária, pressionando ainda mais o resultado fiscal.
Para Jucá, a ida ao Supremo para questionar os juros compostos pode ser um novo canal que os Estados
encontraram para negociar com o governo federal não somente os termos da dívida como o pacto federativo como
um todo.
Mendes diz que, em razão do desequilíbrio financeiro no qual os Estados se encontram, o benefício da redução da
despesa com dívida não seria poupado pelos governos regionais e viraria despesa. Ou seja, o fluxo que deixaria de
ser pago à União tenderia a se tornar déficit primário adicional do setor público.
Mendes também chama atenção para outro “efeito colateral”. Com os juros simples, diz ele, há o financiamento
das regiões Norte, Nordeste e CentroOeste
a Estados da região Sul e Sudeste, já que os governos mais beneficiados
são os de São Paulo, Minas Gerais, do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que representam mais de 80% da dívida
total.