Alguns dispositivos sobre faltas disciplinares eram incompatíveis com a ordem constitucional estabelecida em 1988.
O Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou dispositivos da Lei Federal 4.878/1965 que estabelecem condutas consideradas transgressões disciplinares de servidores policiais civis da União e do Distrito Federal. O entendimento do Plenário foi de que parte das condutas elencadas viola direitos fundamentais e, por este motivo, não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988. O tema foi analisado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 353, julgada na sessão virtual encerrada em 18/6.
A ação foi ajuizada pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), sob o argumento de que as normas constantes do artigo 43 da Lei 4.878/1965 contrariariam o direito à segurança, pois interfeririam “na plena capacidade laboral, intelectual e de eficácia” da Polícia Federal. A confederação sustentava, ainda, que as regras, editadas durante a ditadura militar, teriam como objetivo “a perseguição política ou pessoal aos subordinados”. O artigo tem 63 incisos e elenca transgressões disciplinares de funcionários policiais civis da União e do Distrito Federal.
Análise caso a caso
Em voto pela parcial procedência do pedido formulado na ação, a relatora, ministra Cármen Lúcia, observou, inicialmente, que o fato de a lei ter sido editada no período do autoritarismo não é suficiente para impedir sua recepção pela Constituição de 1988, pois outras normas de períodos de restrição de direitos, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Código Tributário Nacional, continuam válidas. O que se faz necessário é o exame da compatibilidade material das normas com o novo regime constitucional.
Carreiras peculiares
De acordo com a ministra, eventuais restrições ao exercício de direitos dos servidores públicos devem ter relação estrita e imprescindível com a garantia da qualidade das atribuições do cargo e da eficiência do serviço público, segundo parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade. No caso específico, é admissível, a seu ver, que os integrantes das carreiras das polícias federal e civil sejam submetidos a regime disciplinar distinto do aplicado aos servidores em geral, pois as atribuições exercidas por eles não têm paralelo nas demais atividades do serviço público civil ou na iniciativa privada.
Direito de expressão
Por unanimidade, o colegiado entendeu que o inciso I, que veda aos policiais a possibilidade de referir-se de modo depreciativo às autoridades e aos atos da administração pública, qualquer que seja o meio empregado, não foi recepcionada pela Constituição. Segundo a relatora, os servidores são cidadãos que podem emitir livremente suas opiniões, e não podem apenas se manifestar de forma a comprometer as atividades das polícias (por exemplo, com a divulgação de fatos acobertados por sigilo. “A definição restritiva daqueles comportamentos cerceiam a livre manifestação da opinião dos servidores configurando censura, o que é expressamente vedado pela Constituição da República”, afirmou.
Informações sigilosas
Em relação à regra que veda a divulgação, por qualquer meio, de fatos ocorridos na repartição (inciso II), a ministra entendeu que deve ser interpretada de forma a restringir sua aplicação aos fatos que possam comprometer a finalidade funcional ou a eficiência do serviço prestado. Ela destacou que, em tempos de redes sociais e de multimídia, a regra não pode ter o mesmo enquadramento fático do que existia na época de sua edição, devendo ser direcionada aos fatos de natureza sigilosa ou afeitos à eficácia da função administrativa, que não podem ser divulgados, especialmente por servidores que têm o encargo específico de executar a atividade policial.
Possibilidade de perseguição
Em seu voto, a relatora também considerou inválida a conduta tipificada como “entregar-se à prática de atos atentatórios aos bons costumes” (inciso LI). De acordo com Cármen Lúcia, a regra não tem conteúdo minimamente especificado, o que pode favorecer a perseguição a servidores. Outros dois pontos invalidados (incisos V, VI e XXXV) tratam do não pagamento de pensões e dívidas e da assunção de dívida ou compromisso superior às possibilidade financeiras do servidor. Segundo a ministra, não é juridicamente razoável tipificar como transgressão disciplinar o simples inadimplemento de dívida ou o endividamento. “A questão é atinente à vida privada do servidor público e deve ser solucionada pelo interessado pelas vias judiciais e extrajudiciais legalmente previstas”, ressaltou.
Alcoolismo
Em outro ponto analisado, o colegiado conferiu interpretação ao inciso XLIV, que considera falta o “vício da embriaguez”, para que sejam excluídos de sua aplicação os servidores diagnosticados com transtornos mentais e comportamentais relacionados ao uso de álcool ou outras substâncias. A relatora observou que, embora seja admissível a punição disciplinar de policial que faça uso recreativo de substâncias ilícitas ou cujo consumo eventual de álcool interfira no exercício de suas funções, não se pode estabelecer tipificação disciplinar que busque punir a condição de alcoólatra ou de dependente químico. Nesse ponto, ficou vencido o ministro Marco Aurélio.
Resultado
A ação foi julgada parcialmente procedente para declarar a não recepção pela Constituição Federal de 1988 dos incisos I, V, VI, XXXV e LI do artigo 43 da Lei 4.878/1965 e para conferir interpretação conforme a Constituição aos incisos II e XLIV da do mesmo artigo.
Fonte: STF