Artigo publicado na Revista Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 192, fev. 2017
Sérgio de Brito Yanagui
Resumo: O presente trabalho terá por finalidade avaliar a constitucionalidade da restrição à participação em concurso público de candidato que responde a processo criminal. Essa questão será tratada sob o prisma da possível colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência. Serão analisados os argumentos favoráveis e desfavoráveis à restrição com base na doutrina e na jurisprudência, a fim de se eleger a posição que mais seja adequada ao ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente, essa matéria aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário nº 560.900/DF.
Palavras-chave: Direito administrativo. Concurso público. Princípio da moralidade administrativa. Presunção de inocência.
Sumário: 1 Introdução – 2 Breve relato do Recurso Extraordinário nº 560.900/DF – 3 O princípio da moralidade administrativa – 4 O princípio da presunção de inocência – 5 A suposta colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência – 6 Conclusão – Referências
1 Introdução
O presente trabalho tem por finalidade avaliar a constitucionalidade da restrição à participação em concurso público de candidato que responde a processo criminal. Essa questão será tratada sob o prisma da possível colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência.
Atualmente, essa questão aguarda julgamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede do Recurso Extraordinário (RE) nº 560.900/DF, cuja repercussão geral já foi reconhecida. Com isso, foi determinado o sobrestamento de pelo menos outros 225 processos sobre a matéria.
Assim sendo, o presente artigo é dividido em 4 seções. Na primeira seção são tratados os aspectos fáticos do caso que deu origem ao RE nº 560.900/DF. Nas duas seções seguintes, são analisados respectivamente o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência. No quarto item, analisa-se a possível colisão entre esses dois princípios à luz do caso concreto.
Para alcançar o desiderato científico proposto, foi utilizado como material de pesquisa a legislação nacional, a doutrina jurídica existente e a jurisprudência pertinente. O material foi obtido por meio de livros, artigos e jurisprudência do STF. Com isso, fez-se um estudo crítico do material levantado, bem como uma identificação dos aspectos controvertidos sobre a questão, para avaliar as possíveis posições, a fim de selecionar a mais coerente com o ordenamento jurídico brasileiro.
2 Breve relato do Recurso Extraordinário nº 560.900/DF
Diversos editais de concurso público, notadamente aqueles que tratam do ingresso na carreira policial e na magistratura, preveem a exigência de “idoneidade moral”, e, com isso, recusam a inscrição de candidatos que estejam respondendo a processos criminais, inquéritos policiais ou processos disciplinares.
Em 2005, no Distrito Federal, um candidato do Curso de Formação de Cabos teve sua inscrição inadmitida, por ser réu de uma ação penal. Inconformado, o candidato impetrou o Mandado de Segurança nº 0015658-85.2006.8.07.0001, que foi julgado procedente em 1ª instância. Contra essa decisão, o Distrito Federal interpôs apelação cível perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a qual teve o provimento negado.1 Contra esse acórdão, o Distrito Federal interpôs o Recurso Extraordinário (RE) nº 560.900/DF, que foi distribuído ao Ministro Joaquim Barbosa. No dia 07 de dezembro de 2007, o Ministro Joaquim Barbosa manifestou-se pela existência de repercussão geral2 e determinou o sobrestamento de outros 225 processos da mesma matéria.
Essa questão com repercussão geral foi classificada no STF sob o título “Tema 22 – Restrição à participação em concurso público de candidato que responde a processo criminal”. Com a aposentadoria do Ministro Joaquim Barbosa, a relatoria do RE nº 560.900/DF foi redistribuída ao Ministro Luís Roberto Barroso.
No dia 11 de maio de 2016, iniciou-se o julgamento do RE nº 560.900/DF no plenário do Supremo Tribunal Federal. Contudo, a sessão foi suspensa, em razão de pedido de vista do Ministro Teori Zavascki. Até o momento de conclusão deste trabalho, o julgamento do RE nº 560.900/DF ainda não foi retomado.
Em suma, o que se discute no caso é a suposta colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência. Assim, nos dois capítulos seguintes, serão analisados respectivamente o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência, a partir da doutrina e da jurisprudência.
3 O princípio da moralidade administrativa
O princípio da moralidade administrativa está previsto expressamente no caput do artigo 373 da Constituição Federal. De acordo com esse princípio, não basta que a Administração Pública paute-se pelas leis existentes, em conformidade com o princípio da legalidade, mas também deve agir de acordo com os preceitos morais. A moralidade administrativa constitui, por conseguinte, pressuposto de validade de qualquer ato administrativo (MEIRELLES, 2004, p. 89). A questão que imediatamente se coloca é como se deve conceber tal “moral”.
De acordo com Hely Lopes Meirelles, Maurice Hariou, no início do século XX, foi o grande sistematizador do conceito de “moralidade administrativa”, distinguindo-a da “moral comum” (MEIRELLES, 2004, p. 89). Segundo Hariou, “a moral comum é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação” (MEIRELLES, 2004, p. 89). Conforme Meirelles (2004, p. 89), diversos outros juristas consagrados como Welter e Lacharrière adotam essa mesma distinção entre “moral comum” e “moral administrativa”, relacionando esse último conceito à honestidade no interior da Administração.
Já no final do século XX, no Brasil, Celso Antônio Bandeira de Mello trata o princípio da moralidade administrativa de modo similar àqueles administrativistas. Para o jurista brasileiro, a moralidade administrativa estaria diretamente associada aos princípios da lealdade e da boa-fé, que podem ser entendidos assim:
Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 119-120)
No trecho transcrito, Celso Antônio Bandeira de Mello parece preencher com maior carga semântica o conceito de moralidade administrativa, ao apresentar condutas que violariam esse princípio.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto caracteriza a imoralidade administrativa da seguinte forma: “o agente público pratica ato administrativo (ou contrato administrativo ou ato administrativo complexo) fundando-se em motivo: a) inexistente; b) insuficiente; c) inadequado; d) incompatível; e e) desproporcional” (2007, p. 65). Para esse autor, por conseguinte, a imoralidade administrativa é um vício de motivo do ato administrativo.
No ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil Federal (Decreto Federal nº 1.171, de 22 de junho de 1994) trata implicitamente do princípio da moralidade administrativa e também o relaciona com a honestidade. Vale conferir o inciso II:
II – O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e §4º, da Constituição Federal.
Além disso, diversas normas jurídicas foram promulgadas com base no princípio da moralidade administrativa. Entre essas normas, as mais conhecidas são a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010), Lei da Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), entre outras. A norma que faz referência mais explícita ao princípio da moralidade é a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), que prevê: “Art. 4º Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos”. Por fim, vale lembrar de um caso emblemático a respeito de aplicação concreta do princípio da moralidade administrativa: a proibição do nepotismo. Esse tema foi primeiramente normatizado pela Resolução nº 07,4 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com aplicação restrita aos membros do Poder Judiciário. Posteriormente, a proibição do nepotismo foi sumulada pelo Supremo Tribunal Federal, por intermédio da Súmula Vinculante nº 13.5 Nota-se, a propósito, que a prática de nepotismo ajusta-se perfeitamente à caracterização da imoralidade administrativa feita pelos juristas brasileiros, como ato legal, mas eivado de um motivo desonesto.
4 O princípio da presunção de inocência
O princípio da presunção de inocência surgiu no Direito a fim de evitar os abusos decorrentes do sistema inquisitório, que se utilizava de graves torturas para extrair do acusado a confissão. Percebeu-se ao passar do tempo que o acusado, embora inocente, muitas vezes assumia a autoria do delito tão somente para cessar as longas sessões de tortura. Nesse contexto, Cesare Beccaria, no auge do Iluminismo, sabiamente defendeu: “Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada” (1999, p. 61). Nesse sentido, verifica-se que o princípio da presunção de inocência desde sua origem tem uma íntima relação com o devido processo legal e a ampla defesa.
Em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previu a presunção de inocência em seu artigo 9º: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. Em sentido análogo, já no século XX, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) previu em seu artigo 8º, item 2: “Artigo 8º – Garantias judiciais […] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. No Brasil, o inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República de 1988 prevê também expressamente a presunção de inocência nos seguintes termos: “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória”.
Após a consolidação do Estado de Direito nas sociedades contemporâneas, a relevância da presunção de inocência passou a ser uma inquestionável conquista. Contudo, os doutrinadores passaram a debater os limites do princípio da presunção de inocência, uma vez que, tomado em sentido absoluto, tal princípio obstaculizaria qualquer medida cautelar contra o acusado, por exemplo a prisão provisória.6 De acordo com Mirabete,
o que se entende hoje, como diz Florian, é que existe apenas uma tendência à presunção de inocência, ou mais precisamente, um estado de inocência, um estado jurídico no qual o acusado é inocente até que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. (MIRABETE, 2001, p. 42)
A condenação do acusado deve se fundamentar em provas robustas, que assegurem a convicção do julgador, pois, em caso de dúvida, o acusado deve ser declarado inocente. É o que determina o princípio “in dubio pro reo”, que nada mais é do que um desdobramento lógico do princípio da presunção de inocência.
O princípio da presunção de inocência não é exclusivo do Direito Penal, uma vez que é próprio da essência dos princípios jurídicos o seu caráter axiológico, que serve de orientação para solucionar as antinomias. Por essa razão, os valores consubstanciados nos princípios irradiam-se em todo o ordenamento jurídico, sem restringir-se, tal como as regras, a um campo diminuto de aplicação. Por conseguinte, não há qualquer óbice de aplicação de um princípio originariamente criado no Direito Processual Penal em outros domínios do Direito, tal como o Direito Administrativo. De acordo com Fábio Medina Osório,
Opera a presunção de inocência, no campo administrativo e no terreno penal, com diferenças sensíveis. Trata-se de uma garantia genérica da pessoa humana, estendida aos acusados em geral, a partir de um estatuto jurídico de liberdade outorgado originariamente aos cidadãos e às pessoas que transitam ou estão debaixo do império de um Estado Democrático de Direito. (OSÓRIO, 2005, p. 478)
No Supremo Tribunal Federal, há vários precedentes7que aceitam essa aplicação em outros domínios do princípio da presunção de inocência, mostrando existir uma sinergia do ordenamento jurídico brasileiro.
No que se refere à questão da restrição em concurso público de candidato investigado, o Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência vacilante. Há precedentes tanto em sentido desfavorável aos candidatos,8 quanto em sentido favorável.9 Assim, para tentar alcançar uma conclusão mais sólida e definitiva, deve-se debater essa suposta colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência no caso concreto, o que será feito no tópico seguinte.
5 A suposta colisão entre o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência
De pronto, é importante ressaltar brevemente a diferenciação entre princípios e regras. Para tanto, dois critérios têm sido tradicionalmente adotados. O primeiro trata de um critério da abstração: a regra tem conteúdo mais definido, razão pela qual restaria claro o que se pretende alcançar e o meio para tanto; já o princípio tem um caráter mais aberto, traz um valor, mas não diz concretamente a conduta que os jurisdicionados devem adotar. O segundo trata do critério da aplicação: a regra se aplica de acordo com o critério “tudo ou nada”, ou seja, em caso de colisão, apenas uma das regras deve prevalecer; por sua vez, os princípios, colidindo-se, não são resolvidos segundo o modelo do “tudo ou nada”, mas pela ponderação. De acordo com Dworkin,
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis quanto à maneira tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, 2007, p. 39)
Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. (DWORKIN, 2007, p. 42)
Assim, conclui-se que, diferentemente do que ocorre na colisão entre regras, da colisão entre princípios não deve resultar um princípio. No caso de colisão entre princípios, deve-se fazer uma ponderação dos princípios em vista do caso concreto, para aplicá-los em diferentes graus de intensidade, sem que isso implique a invalidade de qualquer um dos princípios. No que diz respeito à ponderação, vale destacar o entendimento de Luís Roberto Barroso:
A denominada ponderação de valores ouponderação de interesses é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. (BARROSO, 2008, p. 330)
No caso da restrição em concurso público de candidato investigado, de acordo com o RE nº 560.900/DF, haveria supostamente uma colisão entre dois princípios: o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência. Por um lado, o princípio da moralidade administrativa, ao exigir a idoneidade de seus agentes públicos, vedaria a inscrição daqueles candidatos investigados criminalmente. Por outro lado, o princípio da presunção de inocência assegura ao acusado a sua inocência até que seja declarada judicialmente a sua culpa por sentença transitada em julgado, o que impediria tal restrição enquanto a investigação estiver em curso.
Ocorre que, na realidade, trata-se de uma falsa colisão de princípios. A restrição em concurso público de candidato investigado não assegura o respeito ao princípio da moralidade administrativa. Tal restrição é apenas um falso moralismo, que estigmatiza aqueles que figuram na condição de réu em processo criminal. No Estado Democrático de Direito, a condição de réu não é suficiente para caracterizar a desonestidade de uma pessoa. Nesse sentido, é imperioso ressaltar o entendimento de Canotilho sobre o princípio da presunção de inocência:
O fato de estar sendo investigada ou processada não retira da pessoa a integralidade do status que lhe confere a presunção de inocência, motivo por que não se admite qualquer estigmatização em face da imputação (tratamento externo), de uma sentença sem o trânsito em julgado, ou mesmo de uma sentença absolutória ou extintiva de punibilidade. A estigmatização afasta a inocência em toda a sua plenitude. As restrições somente se justificam após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. (CANOTILHO, 2013, p. 444)
Conforme mencionado anteriormente, a imoralidade administrativa surge da comprovação de um ato desonesto de um agente público, o que não se confirma com a mera instauração de procedimento investigatório. De fato, há vários casos em que o réu é declarado inocente, seja por ausência de autoria ou de materialidade, seja por homonímia. Em tais casos, o candidato cuja inscrição tiver sido negada pode perder de modo irreversível o acesso a cargo público. Essas restrições injustificadas ao ingresso no serviço público violam o princípio da acessibilidade aos cargos públicos, previsto no artigo 37, I, da Constituição de 1988.
O princípio da moralidade administrativa deve ser observado quando o servidor público é condenado criminalmente, caso em que deve haver a perda do cargo público, nos termos do artigo 92 do Código Penal. A restrição em concurso público de candidato investigado, aparentemente fundamentada no princípio da moralidade administrativa, invalida o princípio da presunção de inocência. Portanto, não há uma efetiva colisão de princípios. Há, na verdade, apenas um princípio em questão. Como os princípios não possuem aplicação restrita, mas se irradiam a todo ordenamento jurídico, o princípio da presunção de inocência deve ser respeitado em toda sua amplitude, o que impede a restrição em concurso público de candidato investigado.
Ainda que permaneça o conflito entre os dois princípios, melhor sorte não tem a restrição à luz da técnica de ponderação. Por um lado, a restrição em concurso público de candidato investigado respeita teoricamente o princípio da moralidade administrativa, mas derroga o princípio da presunção de inocência. Por outro lado, a permissão da inscrição de candidato investigado criminalmente respeita o princípio da presunção de inocência, sem retirar a validade do princípio da moralidade administrativa, tendo em vista que, caso comprovada judicialmente a acusação, o servidor deve perder o cargo nos termos do mencionado artigo 92 do Código Penal. Logo, tendo em vista que a ponderação prevê “o mínimo [sacrifício] de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição” (BARROSO, 2008, p. 330), então remanesce a última opção.
Logo, a restrição em concurso público de candidato investigado é inconstitucional, uma vez que viola o princípio da presunção de inocência, sem se fundamentar no princípio da moralidade administrativa.
6 Conclusão
A presente pesquisa examinou as questões jurídicas mais relevantes em torno do Recurso Extraordinário nº 560.900/DF. Conforme mencionado, esse recurso, ao tratar da restrição à participação em concurso público de candidato que responde a processo criminal, enseja o debate de um suposto conflito de princípios: o princípio da moralidade administrativa e o princípio da presunção de inocência.
O princípio da moralidade administrativa, ao exigir a idoneidade de seus agentes públicos, proibiria a inscrição daqueles candidatos investigados criminalmente. Por sua vez, o princípio da presunção de inocência assegura ao acusado a sua inocência até que seja declarada judicialmente a sua culpa por sentença transitada em julgado, o que impediria a restrição enquanto a investigação estiver em curso.
Após a análise separada de cada um dos princípios, verificou-se que se trata de uma falsa colisão entre princípios. A restrição de candidato investigado não se baseia no princípio da moralidade administrativa, mas em um preconceito sofrido por aqueles que figuram na condição de réu de processos criminais. Contudo, no Estado Democrático de Direito, a condição de réu não é suficiente para caracterizar a desonestidade de uma pessoa. Para tanto, é necessária a declaração judicial com trânsito em julgado, tal como previsto no artigo 92 do Código Penal.
Ademais, a restrição do candidato investigado, ao aparentemente respeitar o princípio da moralidade administrativa, invalida a presunção de inocência. Em contrapartida, a proibição dessa restrição respeita ambos os princípios. Logo, à luz da ponderação, a melhor opção é a segunda, tendo em vista que não invalida nenhum dos princípios, mas apenas dá um peso maior ao princípio da presunção de inocência.
Diante do exposto, conclui-se que a restrição em concurso público de candidato investigado é inconstitucional.
Brasília, 20 de dezembro de 2016.
The Inconstitutionality of the Restriction in a Public Contest of Investigated Candidate
Abstract: The purpose of this study is to evaluate the constitutionality of the restriction to participation in a public contest of candidates who respond to criminal proceedings. This question will be dealt with in the light of the possible collision between the principle of administrative morality and the principle of the presumption of innocence. The arguments favorable and unfavorable to the restriction based on doctrine and jurisprudence will be analyzed, in order to choose the position that best suits the Brazilian legal system. Currently, this matter awaits judgment in the Federal Supreme Court, in the extraordinary appeal no. 560.900 / DF.
Keywords: Administrative Law. Public Contest. Principle of Administrative Morality. Presumption of Innocence.
Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
BECCARIA, Cesar. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, Almedina, 2013.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
1 “CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO DE CABO. REJEIÇÃO DE MATRÍCULA. PENDÊNCIA JUDICIAL. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA.
A exclusão do impetrante na seleção para o Curso de Formação de Cabos pela mera denúncia oferecida pelo Ministério Público extrapola o razoável, tornando-se uma decisão tendenciosa, pois, enquanto não condenado por sentença transitada em julgado, há de se presumir a inocência do acusado, conforme regra constitucionalmente preconizada. Assim, tem-se como inaceitável a presunção prevista no Decreto Distrital nº 7.456/83, bem como no edital do certame, de que determinado candidato não possui aptidão por estar sendo processado criminalmente.
Recurso improvido. Unânime.
(Acórdão n. 272027, APC 20060110156588, Relator: Otávio Augusto, Revisor: Sandra de Santis, Sexta Turma Cível, julg. 09.05.2007, DJU, 24 maio 2007, p. 102)”.
2 “Trata-se de recurso extraordinário (art. 102, III, ‘a’, da Constituição) interposto de acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça Distrito Federal e Territórios, em que se considerou inconstitucional a restrição posta à participação em concurso público de formação de Cabos da Polícia Militar, fundada na circunstância de o candidato ter sido denunciado pela prática do crime previsto no art. 342 do Código Penal (Falso testemunho ou falsa perícia).
Sustenta-se violação do art. 5º, LVII, da Constituição, na medida em que “faz-se necessário que policiais que estejam sendo investigados pelo cometimento de crimes e sérios desvios de
conduta não sejam promovidos enquanto permanecerem nessa situação, porquanto que isso afeta o senso de disciplina e hierarquia ínsitas da função policial militar” (fls. 139).
É inequívoco que a definição acerca da validade da restrição posta aos candidatos à aprovação em concurso para provimento de cargo ou função pública, fundada na existência de denúncia criminal transcende o interesse subjetivo das partes, pois interessa a todos os entes federados e a todas as entidades submetidas à feitura de certames públicos para contratação de pessoal. Trata-se de importante sinalização quanto ao alcance do art. 5º, LVII da Constituição, aplicável à regência dos concursos públicos.
Pelo exposto, entendo que, no caso dos autos, está presente o requisito da repercussão geral a que fazem alusão os arts. 102, §3º, da Constituição, 543-A, §1º, do Código de Processo Civil e 323 do RISTF.
Brasília, 07 de dezembro de 2007.
Ministro Relator Joaquim Barbosa”.
3 Diz o referido artigo: “Art. 37. A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”.
4 Resolução nº 7, de 18 de outubro de 2005, do CNJ: “Disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário, e dá outras providências.”
5 Súmula Vinculante nº 13: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
6 De acordo com a Súmula nº 9 do Superior Tribunal de Justiça: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”.
7 “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. HOMOLOGAÇÃO DE DIPLOMA DE CURSO DE VIGILANTE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – Viola o princípio da presunção de inocência a negativa em homologar diploma de curso de formação de vigilante, com fundamento em inquéritos ou ações penais sem o trânsito em julgado. II – Agravo regimental a que se nega provimento (RE 805821 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julg. 24.06.2014, DJe-157, 15 ago. 2014)”.
“Constitucional e Administrativo. Poder disciplinar. Prescrição. Anotação de fatos desabonadores nos assentamentos funcionais. Declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 170 da Lei nº 8.112/90. Violação do princípio da presunção de inocência. Segurança concedida. 1. A instauração do processo disciplinar interrompe o curso do prazo prescricional da infração, que volta a correr depois de ultrapassados 140 (cento e quarenta) dias sem que haja decisão definitiva. 2. O princípio da presunção de inocência consiste em pressuposto negativo, o qual refuta a incidência dos efeitos próprios de ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do perfazimento ou da conclusão do processo respectivo, com vistas à apuração profunda dos fatos levantados e à realização de juízo certo sobre a ocorrência e a autoria do ilícito imputado ao acusado. 3. É inconstitucional, por afronta ao art. 5º, LVII, da CF/88, o art. 170 da Lei nº 8.112/90, o qual é compreendido como projeção da prática administrativa fundada, em especial, na Formulação nº 36 do antigo DASP, que tinha como finalidade legitimar a utilização dos apontamentos para desabonar a conduta do servidor, a título de maus antecedentes, sem a formação definitiva da culpa. 4. Reconhecida a prescrição da pretensão punitiva, há impedimento absoluto de ato decisório condenatório ou de formação de culpa definitiva por atos imputados ao investigado no período abrangido pelo PAD. 5. O status de inocência deixa de ser presumido somente após decisão definitiva na seara administrativa, ou seja, não é possível que qualquer consequência desabonadora da conduta do servidor decorra tão só da instauração de procedimento apuratório ou de decisão que reconheça a incidência da prescrição antes de deliberação definitiva de culpabilidade. 6. Segurança concedida, com a declaração de inconstitucionalidade incidental do art. 170 da Lei nº 8.112/1990. (MS 23262, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julg. 23.04.2014, DJe-213, 30 out. 2014)”.
8 ADMINISTRATIVO E PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONCURSO PÚBLICO. ENVOLVIMENTO DO CANDIDATO EM INQUÉRITO. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. INAPLICABILIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE POR CUMPRIMENTO DA PENA. 1. Não viola o princípio da presunção da inocência o afastamento do certame, de candidato condenado e cuja punibilidade foi extinta em razão do cumprimento da proposta de pena. 2. Esta Corte já decidiu que a participação em curso da Academia de Polícia Militar, assegurada por força de antecipação de tutela, não é apta a caracterizar o direito líquido e certo à nomeação. 3. Agravo regimental improvido. (RE 356282 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julg. 10.03.2009, DJe-064, v. 2355-05, p. 864, 03 abr. 2009).
Agravo regimental em recurso extraordinário. Mandado de segurança. Impetrante que não respondia a processo de natureza criminal, à época dos fatos. Situação diversa daquela assentada nos precedentes trazidos à colação. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que não viola o princípio da presunção de inocência a exclusão de militar, do quadro de promoção, na hipótese de estar denunciado em processo criminal. Situação fática descrita nos autos é diversa, pois não há ação penal instaurada contra o agravado. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 434198 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julg. 28.02.2012, DJe-065, 30 mar. 2012).
9 Agravo regimental no agravo de instrumento. Concurso público. Delegado da Polícia Civil. Inquérito policial. Investigação social. Exclusão do certame. Princípio da presunção de inocência. Violação. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte firmou o entendimento de que viola o princípio da presunção de inocência a exclusão de certame público de candidato que responda a inquérito policial ou ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória. 2. Agravo regimental não provido. (AI 829186 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julg. 23.04.2013, DJe-123, 27 jun. 2013).
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) – CONCURSO PÚBLICO – ASSISTENTE SOCIAL DA FUNDAÇÃO CASA – INVESTIGAÇÃO SOCIAL – VIDA PREGRESSA DO CANDIDATO – EXISTÊNCIA DE REGISTRO CRIMINAL – PROCEDIMENTO PENAL DE QUE NÃO RESULTOU CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO – EXCLUSÃO DO CANDIDATO – IMPOSSIBILIDADE – TRANSGRESSÃO AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – A exclusão de candidato regularmente inscrito em concurso público, motivada, unicamente, pelo fato de existirem registros de infrações penais de que não resultou condenação criminal transitada em julgado vulnera, de modo frontal, o postulado constitucional do estado de inocência, inscrito no art. 5º, inciso LVII, da Lei Fundamental da República. Precedentes. (ARE 847535 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julg. 30.06.2015, DJe-154, 06 ago. 2015).
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Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
YANAGUI, Sérgio de Brito. A inconstitucionalidade da restrição em concurso público de candidato investigado. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 192, fev. 2017. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=246805>. Acesso em: 18 set. 2017.
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Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:
YANAGUI, Sérgio de Brito. A inconstitucionalidade da restrição em concurso público de candidato investigado. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 192, p. 63-68, fev. 2017.