Artigo publicado por Gustavo Linhares no site www.arcos.org.br.
A compatibilização entre o mandado de segurança e o CPC
O mandado de segurança constitui instrumento processual destinado a proteger direito líquido e certo violado, ou passível de ser violado, em razão da prática, por parte de autoridade publica, de ato ilegal ou abusivo.
Observe-se que as peculiaridades atinentes ao cabimento do mandado de segurança exigem previsões processuais próprias, de modo a se adequarem os procedimentos às peculiaridades inerentes ao propósito da ação. Nessa linha, o mandado de segurança sempre esteve regulado por disciplina própria. Recentemente, a disciplina do mandado de segurança passou a ser veiculada pela Lei n.º 12.016, de 7 de agosto de 2009, e foram revogadas as leis que antes dispunham sobre a ação mandamental.
A leitura da nova Lei do Mandado de Segurança revela nítidos pontos de aproximação, ou mesmo de equivalência, entre a disciplina da ação mandamental e as previsões do Código de Processo Civil.
É natural que, ao mandado de segurança, se apliquem normas do Código de Processo Civil, até para que se mantenha íntegra a unidade do sistema processual. Por outro lado, essa comunicação legislativa jamais pode ser empregada a ponto de comprometer a eficácia do mandado de segurança.
Serão analisadas aqui as hipóteses em que a Lei n.º 12.016/2009 aproveita nos seus comandos as normas do Código de Processo Civil. Busca-se com esse estudo, primeiramente, identificar as ocasiões em que se revela positiva a compatibilização entre a Lei n.º 12.016/2009 e o Código de Processo Civil para, em seguida, adentrar na investigação das situações em que referida compatibilização ameaça desnaturar a ação mandamental.
Aproveitamento positivo do CPC
Verdadeiramente, mostra-se desnecessário estruturar toda uma disciplina processual própria para regular o mandado de segurança. É natural que se aproveitem dispositivos do Código de Processo Civil para regular o procedimento da ação mandamental. Em certa medida, a Lei n.º 12.016/2009 utilizou-se adequadamente dessa viabilidade e inseriu em seu texto valiosas remissões, ora expressas ora implícitas, ao Código Processual Civil.
No art. 6º, caput, da Lei n.º 12.016/2009, consta determinação de que a petição inicial do mandado de segurança preencha os requisitos estabelecidos pela lei processual. De fato, é válido exigir-se que a petição inicial do mandado de segurança preencha os requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil. Esse comando funda-se na observância ao conteúdo mínimo da peça exordial, a fim de propiciar os elementos formais e informativos mínimos à boa compreensão da demanda e em nada mitiga a essência do mandado de segurança.
O § 5º do art. 6º da Lei n.º 12.016/2009 prevê aplicação, ao mandado de segurança, das hipóteses de extinção do processo sem resolução de mérito e, para tanto, faz reporte ao art. 267 do Código de Processo Civil. Realmente, reputa-se adequado adotar, em sede de mandado de segurança, a solução já consagrada pelo Código de Processo Civil para as hipóteses que conduzem à extinção do processo sem resolução do mérito.
Noutro ponto, afigura-se imperiosa a previsão de recurso contra a decisão que, em mandado de segurança, conceder ou denegar a liminar em primeiro grau de jurisdição. Nada mais adequado do que aproveitar o recurso próprio previsto pelo Código de Processo Civil para a impugnação, em regime de urgência, de decisões interlocutórias proferidas em primeira instância. Dessa forma, acertada a opção da Lei n.º 12.016/2009 de prever, em seu art. 7º, § 1º, o agravo de instrumento como o recurso cabível na hipótese em tela e de, assim, autorizar o emprego, na via mandamental, das pertinentes previsões dos arts. 522 e seguintes do Código de Processo Civil. Nesse particular, a Lei n.º 12.016/2009 pôs termo a controvérsia jurisprudencial outrora existente.
Da mesma forma, inegavelmente válida a previsão do art. 14, caput, da Lei n.º 12.016/2009, que estabelece a apelação como recurso cabível contra sentença concessiva ou denegatória da ordem mandamental, ocasião em que invoca, para os domínios da lei específica, as normas genéricas previstas nos arts. 513 e seguintes do Código de Processo Civil.
O § 1º do art. 14 da Lei n.º 12.016/2009 também adota adequadamente solução preconizada pelo Código de Processo Civil. Esse parágrafo prevê o duplo grau de jurisdição obrigatório nos casos em que for concedida a segurança. Com efeito, concedida a segurança, será verificada sucumbência sofrida pelo ente público, o que demanda o reexame necessário, conforme previsões do art. 475 do Código de Processo Civil. Por outro lado, cumpre ponderar que o reexame necessário não pode ser empregado irrestritamente no mandado de segurança. A exceção ao reexame necessário prevista no § 3º do art. 475 do Código de Processo Civil também merece aplicação no tocante a sentenças concessivas da ordem mandamental.
O art. 25 da Lei n.º 12.016/2009 estabelece serem incabíveis os embargos infringentes no mandado de segurança e, assim, excluiu expressamente do rito da ação mandamental o recurso previsto nos arts. 530 e seguintes do Código de Processo Civil. Ao se considerar que a celeridade sempre foi um dos postulados do procedimento do mandado de segurança, parece acertada a opção legislativa de negar cabimento a um recurso tradicionalmente dotado de pouca eficácia e de reduzida contribuição para o sistema processual. Ao rejeitar cabimento aos embargos infringentes, a Lei n.º 12.016/2009 adotou posicionamento voltado à realização da celeridade e da eficiência – pressupostos da ação mandamental. A propósito, antes da edição da Lei n.º 12.016/2009, o cabimento de embargos infringentes na via mandamental já encontrava óbice no enunciado n.º 169 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
Por fim, destaque-se ser de notável utilidade aplicar, ao mandado de segurança, as previsões do Código de Processo Civil a respeito do litisconsórcio. Logo, o art. 24 da Lei n.º 12.016/2009 foi pertinente ao adotar os 46 a 49 do Código de Processo Civil.
Parece inegável, portanto, existir um aproveitamento positivo, na disciplina do mandado de segurança, de determinadas normas do Código de Processo Civil. Como visto, a Lei n.º 12.016/2009, em diversos pontos, socorreu-se adequadamente de soluções processuais consagradas no referido código.
Aproveitamento negativo do CPC: risco de mitigação do mandado de segurança
Consoante disposição constitucional expressa (art. 5º, LXIX), o mandado de segurança volta-se contra ato ilegal ou abusivo praticado por “autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”. Semelhantes determinações são extraídas do art. 1º, caput e § 1º, da lei n.º 12.016/2009.
Seguindo essa linha de orientação, indica-se para figurar no pólo passivo da ação mandamental a autoridade responsável pela prática, concretizada ou iminente, do ato ilegal ou abusivo. Essa autoridade, por sua vez, presenta a pessoa jurídica de direito pública a que está vinculada. Regularmente presentada, a pessoa jurídica de direito público passa a compor a polaridade passiva e a constituir a verdadeira parte processual (Medina, p. 46).
Essa construção tem por escopo propiciar maior agilidade na tramitação do mandado de segurança. De fato, a autoridade coatora, após notificada, dispõe de prazo relativamente curto para prestar as informações (art. 7º, I, da Lei n.º 12.016/2009); tudo em sintonia com o ideal de celeridade inerente à ação constitucional em estudo. Veja-se que, embora mais célere, esse procedimento não gera prejuízo para a defesa da pessoa jurídica de direito público. As informações em mandado de segurança constituem defesa técnica elaborada por advogado público ou por consultor jurídico devidamente habilitado à proteção dos direitos da pessoa jurídica demandada.
Nada impede, por outro lado, que o cidadão supostamente lesado por autoridade pública opte pela propositura de ação pelo rito ordinário, em vez de impetrar o mandado de segurança. Diferentemente do mandado de segurança, a ação proposta pelo rito ordinário caracteriza-se por possibilitar ampla cognição e ampla produção probatória. Naturalmente, a ação manejada pelo rito ordinário constitui instrumento processual de tramitação mais lenta que o mandado de segurança. Ao optar pelo ajuizamento de ação pelo rito ordinário, o autor pode contar com uma ampla possibilidade de produção probatória, mas aquiesce com o fato de que, em princípio, terá de aguardar mais tempo para obter a realização de seu direito.
Revela-se problemática a tendência de se adotar, no rito do mandado de segurança, procedimentos que afetem as características mais essenciais dessa ação constitucional. Como visto, uma das vantagens do mandado de segurança seria a previsão de um procedimento mais célere. Existem desvantagens na ação mandamental, tais como os limites cognitivos e probatórios. Decerto, ao se eliminar do rito do mandado de segurança vantagens atinentes à celeridade, essa ação constitucional poderá ser gravemente esvaziada. Até porque, se não puder contar com o benefício da celeridade, o cidadão tenderá a optar pela propositura de ação pelo rito ordinário, uma vez que esta garante maiores viabilidades cognitivas e probatórias. O que não prospera é a idéia de uma ação lenta e de cognição restrita.
Ainda sobre risco de mitigação do mandado de segurança
A Lei n.º 12.016/2009 positivou procedimentos que nitidamente comprometem a essência do mandado de segurança. O art. 6º, caput, dessa lei determina que a petição inicial do mandado de segurança “indicará, além da autoridade coatora, a pessoa jurídica que esta integra, à qual se acha vinculada ou da qual exerce atribuições”. Como consequencia direta dessa previsão, exsurge o art. 7º, II, da mesma lei, o qual dispõe que o juiz, ao despachar a petição inicial, ordenará seja dada “ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da inicial sem documentos, para que, querendo, ingresse no feito”. É prevista ainda a intimação da pessoa jurídica interessada quanto ao inteiro teor da sentença concessiva da ordem mandamental, conforme art. 13, caput, da Lei n.º 12.016/2009. Mais adiante, o art. 22, § 2º, da citada lei preconiza que, “no mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante da pessoa jurídica de direito público”.
Como se vê, a Lei n.º 12.016/2009 pretendeu atribuir à pessoa jurídica de direito público a prerrogativa de defender-se de forma autônoma e independente, sem guardar qualquer vinculação com a defesa apresentada pela autoridade coatora. Entretanto, essa garantia de defesa autônoma conferida à pessoa jurídica de direito público mostra-se completamente despicienda. De fato – reitere-se – a autoridade coatora presenta a pessoa jurídica de direito público na ação mandamental e essa pessoa jurídica é que passa a constituir a verdadeira parte processual a figurar no pólo passivo da relação jurídico-processual.
Se a pessoa jurídica de direito público, regularmente presentada pela autoridade coatora, já figura no pólo passivo da ação mandamental, parece desnecessário que essa mesma pessoa jurídica tenha a prerrogativa de ingressar no feito de forma autônoma. A bem da verdade, ao exercer o direito previsto no art. 7º, II, da Lei n.º 12.016/2009, a pessoa jurídica de direito público ingressa em uma relação jurídico-processual em que já figura como parte. A Lei n.º 12.016/2009, afastando-se da boa técnica processual, institui um inusitado litisconsórcio passivo em que a pessoa jurídica de direito público figura duplamente.
A partir dos comandos da nova lei, a pessoa jurídica de direito público poderá defender-se duplamente no mesmo processo, o que, seguramente, não propiciará incremento do contraditório, embora acarrete prejuízo de tempo na tramitação do feito.
Veja-se um exemplo: um cidadão impetra um mandado de segurança em face de ato de autoridade integrante de um ministério. Em cumprimento ao art. 6º, caput, da Lei n.º 12.016/2009, o impetrante indica para figurar no pólo passivo da ação mandamental a autoridade coatora e a pessoa jurídica que esta integra. O juiz da causa, ao despachar a inicial, observará o art. 7º dessa lei. Assim, determinará, nos termos do inciso I, a notificação do coator para prestar informações em 10 (dez) dias. Na mesma ocasião, ordenará, conforme inciso II, seja dada ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, para, querendo, ingressar no feito. Cumprida a notificação do coator, prevista no inciso I, as informações serão elaboradas por advogado público investido na carreira da Advocacia Geral da União e lotado no ministério a que se encontra vinculada a autoridade coatora. Cientificada o órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, consoante determinação do inciso II, e manifestado o interesse dessa pessoa jurídica em ingressar no feito, será elaborada contestação por advogado público investido na carreira da Advocacia Geral da União e com lotação em órgão de atuação na área de contencioso. Note-se que dois advogados da União apresentarão suas respostas, simultaneamente, no mesmo processo. A única diferença entre os referidos advogados públicos é a lotação, mas ambos defendem direitos da União. Afiguram-se, portanto, de pouca utilidade as regras que preconizam a duplicidade de defesa da pessoa jurídica de direito público em mandado de segurança.
Algumas críticas sobre a possível morosidade e pouca efetividade do mandado de segurança
Além disso, tais regras geram indesejada morosidade no rito do mandado de segurança. As informações em mandado de segurança devem ser apresentadas no prazo de 10 (dez) dias, conforme art. 7º, I, da Lei n.º 12.016/2009. Esse procedimento, por si só, seria suficiente para a plena defesa dos direitos da pessoa jurídica de direito público e, por sua celeridade, adequa-se perfeitamente à ação mandamental.
Diferentemente, o procedimento previsto no art. 7º, II, da referida lei, além de despiciendo, coloca em risco a celeridade buscada na utilização da via mandamental. Caso a pessoa jurídica de direito público pretenda ingressar no feito, deverá, naturalmente, defender-se. Essa defesa será veiculada por contestação. De pronto, verifica-se o prejuízo de tempo a que o impetrante estará submetido, pois, nos termos do artigo 188 c/c o artigo 297 do Código de Processual Civil, o prazo para a pessoa jurídica de direito público oferecer contestação será de 60 (sessenta) dias.
Outro comando que merece atenção especial é o art. 7º, inciso III, da Lei n.º 12.016/2009. Por meio desse dispositivo, foi facultado ao juiz da causa condicionar o deferimento de medida liminar à prestação, pelo impetrante, de “caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica”. O preceito em questão encontra paralelo no artigo 804 do Código de Processo Civil.
Seguindo a orientação que pauta o presente capítulo, espera-se que a exigência da caução não comprometa a viabilidade das concessões de medidas liminares em mandado de segurança. Para obter o deferimento da medida liminar, o impetrante necessariamente deve demonstrar a relevância do fundamento em que se ampara o direito (fumus boni juris) e a possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora). A caução jamais pode ser empregada como um terceiro requisito absoluto à concessão da medida liminar. Diferentemente, a caução merece emprego excepcionalmente. Deve-se sopesar que inúmeros cidadãos não possuem recursos para prestar caução. Não se pode retirar desses cidadãos a possibilidade de obter medida liminar, caso verificada a existência do fumus boni júris e do periculum in mora. Arrisca-se dizer que a exigência maciça de caução poderá desnaturar a ação mandamental em si e, assim, acarretar a mitigação dessa ação constitucional.